Uma hora antes do sol nascer no horizonte carioca, às cinco horas da manhã, um grupo de fiéis católicos inicia o dia em Quintino, bairro da Zona Norte da capital fluminense, para prestigiar a tradicional queima de fogos em homenagem a São Jorge. É o início oficial do dia dedicado ao santo, que é feriado em algumas localidades, como no estado do Rio de Janeiro.
Na crença católica, São Jorge é considerado padroeiro dos cavaleiros, soldados, escoteiros, esgrimistas e arqueiros, sendo conhecido popularmente como o santo guerreiro. Para os devotos, ele simboliza um guia contra as dificuldades da vida, ajudando na luta contra o mal e enfrentando problemas tanto no plano terreno quanto no sobrenatural. Essa crença é também reforçada por um texto do site do Vaticano: “Como acontece com outros santos, envolvidos por lendas, poder-se-ia concluir que também a função histórica de São Jorge é recordar ao mundo uma única ideia fundamental: que o bem, com o passar do tempo, vence sempre o mal. A luta contra o mal é uma dimensão sempre presente na história humana, mas esta batalha não se vence sozinhos: São Jorge matou o dragão porque Deus agiu por meio dele.”
Além do catolicismo, há outras vertentes do cristianismo que o reconhecem como santo, como a Igreja Anglicana e a Igreja Ortodoxa. Também é respeitado por alguns adeptos de religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. O perfil de guerreiro é uma das razões apontadas para sua popularidade, como explica Luiz Antônio Simas, escritor, professor e historiador. Em 2022, ele publicou o livro infantil “O cavaleiro da lua: Cordel para São Jorge”. “São Jorge pertence ao rol do que eu chamo de santos do cotidiano. Aqueles dos milagres diários. Existem santos que você não evoca para os perrengues do dia a dia. Existe uma categoria que é invocada para resolver problemas imediatos. Como Santo Expedito, das causas urgentes. São Jorge é um santo da rua”, afirma Simas.
As origens da fé em São Jorge são incertas, já que não há documentos históricos que comprovem de forma incontestável sua existência. Muito do que se sabe foi transmitido pela tradição oral ou literária. Conforme o Vaticano explica em seu site, várias histórias fantasiosas surgiram ao longo do tempo. Segundo o relato mais aceito, Jorge nasceu por volta do ano 280 na Capadócia, atual Turquia, em uma família cristã. Ele mudou-se para a Palestina e ingressou no exército de Diocleciano, imperador romano. Em 303, durante as perseguições contra cristãos lideradas pelo imperador, Jorge teria se colocado contra ele, sendo torturado e decapitado.
Um dos registros mais antigos sobre ele é uma epígrafe grega de 368, encontrada em Eraclea de Betânia, que menciona a “casa ou igreja dos santos e triunfantes mártires, Jorge e companheiros”. Durante o período das Cruzadas, entre os séculos XI e XIII, outras histórias foram adicionadas à sua mitologia. Uma das narrativas mais conhecidas conta que Jorge matou um dragão que aterrorizava a cidade de Selém, na Líbia, ao salvar a filha do rei. Os cruzados associaram a morte do dragão à derrota do Islamismo. “O dragão sintetiza a ideia da maldade, do inimigo, que está à espreita, no plano espiritual ou material, que te acossa no cotidiano. Acho que São Jorge ganha essa popularidade justamente por causa da simbologia guerreira, bélica, por ser um santo muito articulado com o imaginário de batalhas”, relata Simas.
Curiosamente, Jorge também é uma figura respeitada entre muçulmanos. Alguns estudiosos sugerem que ele seria mencionado no Alcorão como Al-Khidr, personagem venerado no Islã. Segundo Simas, isso reforça o caráter múltiplo de sua imagem: “Há quem diga que ele é um personagem que aparece no Alcorão, chamado Al-Khidr. Ele seria São Jorge. Tem essa multiplicidade por ter esse perfil guerreiro, é o vencedor de demandas.”
Na Inglaterra, o culto a São Jorge foi fortalecido pelos normandos. Em 1348, o Rei Eduardo III instituiu a “Ordem dos Cavaleiros de São Jorge”. Durante a Idade Média, o santo se tornou tema recorrente na literatura épica. Em 1969, o Vaticano, diante da falta de informações históricas mais concretas, alterou o status de sua celebração, que passou de festa litúrgica para memória facultativa.
No Brasil, São Jorge é frequentemente associado a Ogum, orixá das religiões de matriz africana, no âmbito do sincretismo religioso. Contudo, segundo Flávia Pinto, socióloga, escritora e mãe de santo da Casa do Perdão, essa associação não implica que ambos sejam o mesmo personagem. “Para nós do candomblé e da umbanda, já temos consciência hoje que São Jorge não é Ogum. Por um motivo histórico e cronológico. São Jorge existiu na Capadócia há dois mil anos. Já Ogum existe há mais de 10 mil anos na cidade de Ire, na Nigéria. Naturalmente, São Jorge é um filho pródigo de Ogum, mas não é o próprio Ogum”, explica Flávia.
Flávia também critica uma visão romantizada sobre o sincretismo religioso, destacando o contexto violento da colonização. “A aceitação de um santo católico é mais palatável porque a gente tem uma dominação euro-cristã em nosso processo de socialização chamado de colonização. Não podemos chamar de maneira romântica um comportamento genocida e torturador, que foi a imposição da fé de um povo dominador sobre outros povos, que tinham as próprias religiosidades, como os indígenas e os africanos. Mas, ainda assim, a sabedoria milenar desses povos foi tamanha, que conseguimos estudar minimamente a história daquele santo e associar ele aos nossos orixás”, afirma a socióloga.